sexta-feira, 15 de maio de 2015


Crítica:

Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road / 2015 / Austrália) dir. George Miller

por Lucas Wagner

Mad Max – Estrada da Fúria é um filme cujo vilão carrega uma banda de heavy metal em seu comboio para manter uma escala épica em sua empreitada. Só isso bastaria para classificar o longa como algo único, ou no mínimo, peculiar. Mas essa volta de George Miller à franquia que fez dele um cineasta e de Mel Gibson um astro de ação ainda vai muito além, e se transforma em um verdadeiro Hosana à loucura.

Funcionando tanto como reboot quanto continuação da franquia, Estrada da Fúria atualiza os “motivos pra insanidade” adicionando a escassez de água e alimentos à falta de petróleo, potencializando o comportamento primitivo/instintual dos protótipos de humanos que habitam aquele universo. E Miller segue a lógica que foi criando ao longo da franquia, de aumentar, a cada capítulo, o absurdo daquele mundo, mas aqui vai bem além de um ou dois elementos insanos a mais, e atola seu filme de situações e personagens completamente fritos, desde os soldados “meio-vivos” que usam humanos como bolsas de sangue (sendo que esses ainda tem as informações sobre seu tipo sanguíneo tatuadas nas costas), passando pelas gírias envolvendo cromo, até a idolatria do modelo de motor V-8, que ganha contornos ainda mais exaltados na perspectiva daqueles indivíduos de, quando mortos, partirem para o paraíso de Valhalla que, não por acaso tem a inicial “V” e oito letras, ao todo.

E é por uma construção visual minuciosa que Miller e seu designer de produção, Colin Gibson, conferem uma riqueza ímpar à sua narrativa, com diversos elementos feitos de ossos misturados com objetos de metal, uma fortaleza grandiosa que reflete a grandiloqüência de seu vilão (e interessante que a “sacada” de onde fala parece a boca de sua máscara), que ainda tem um harém que mais parece uma enorme gaiola, apenas mais uma parte funcional de uma simulação de império que conta ainda com ordenha de mães (sério) e hortas. Mais curioso ainda talvez sejam os carros, esses os elementos primordiais de qualquer Mad Max, e que aqui assumem diversas modalidades de misturas de carcaças de outros automóveis, às vezes parecendo porcos espinhos e outras até mesmo carros de luxo acoplados a tanques, sem esquecer, é claro, da citada banda de heavy metal que tem um carro completamente adaptado às suas necessidades. As tribos vistas também ganham uma diversidade maior, e Miller tem a criatividade de, mesmo de relance, apresentar modalidades de sobreviventes tão peculiares como aqueles que vagam pelo deserto enlameado como gazelas em pernas de pau. Interessante notar ainda o descompromisso de Miller com o politicamente correto ao usar formas físicas de alguns personagens deformados para causar uma evidente sensação de desconforto no espectador, ao passo que ele mesmo é inteligente ao se adaptar a contextos sociais atuais e tirar as mulheres de seu papel de meros figurantes ou, no máximo, coadjuvantes, como tinham nos anteriores, e aqui as colocar como figuras fortes e independentes, se revoltando contra uma cultura machista.

Aproveitando que citei as mulheres, Charlize Theron se destaca com facilidade como a personagem mais intensa do filme, a Imperatriz Furiosa, capaz de se entregar a acessos de ódio que a tornam uma máquina mortal, mas trazendo sempre uma voz serena, triste como seu semblante tradutor de uma história trágica, numa gama de emoções que Theron equilibra com maestria, chegando a dividir com o próprio Max o papel de protagonista. Falando nele, Tom Hardy pode não ter aqui o carisma de Gibson, mas manda bem ao compor um personagem tão auto-centrado e solitário que a maior parte das falas parecem monólogos resmungados, enquanto Nicholas Hoult mais uma vez demonstra a capacidade de explorar ao máximo um personagem coadjuvante. Ah! E, claro, Melissa Jafer, com quase oitenta anos, expressa um vigor incrível e uma capacidade admirável de descer o cacete.

Trazendo como centro absoluto as sequências de ação, Miller se entrega a exageros deliciosos no crescendo de absurdo ao qual se propõe, tanto de forma mais grotesca (a tempestade de areia) como em elementos mais moleculares, embora igualmente geniais, como o guitarrista que insiste em seu solo mesmo sob porrada. Acaba que Estrada da Fúria, com sua trama simples e focada nas possibilidades de ação, vai ganhando uma energia frenética ao ponto da taquicardia, com Miller se dando o direito de explorar a sensação de um frame rate mais baixo que se traduz na experiência de movimento acelerado dos personagens, o que confere um sabor diferente, estranho a princípio, mas gradualmente mais empolgante, inclusive funcionando na montagem fluída que consegue coadunar as alucinações de Max com suas porradarias (e a sequência de ação na caverna, no início, por isso mesmo acaba ganhando um caráter de pesadelo). É um filme tão confiante nesse seu propósito de chutar bundas, que se permite o direito de construir ação sem que a vejamos, e ainda mostrar, sem o mínimo peso na consciência, personagens saindo tranquilos de acidentes horríveis, tudo isso colorido pelas tonalidades fortes da fotografia de John Seale, que aqui promove diversas experimentações em busca de tons belos, tanto com o sol árido como com a noite azulada com focos de faróis que conferem um efeito bem bonito.

Filme puro em sua proposta de funcionar como um verdadeiro exercício de insanidade, Estrada da Fúria talvez seja o melhor filme da franquia, mesmo comparado com Guerreiro da Estrada. A intensidade que alcança, assim como o compromisso declarado com o nonsense, conferem um valor único a uma produção que alcança estágios raros na fritação.



domingo, 19 de abril de 2015

Entrevista exclusiva com o guitarrista Marcelo Barbosa: "há tempos comentávamos que precisávamos arrumar uma desculpa pra tocar juntos"

  Por Paulo Henrique Faria




         Nesta segunda-feira, véspera de feriado, Goiânia recebe o mais novo projeto musical intitulado "HeavyPop". O grupo é formado por renomados músicos do cenário do Heavy Metal nacional, como o vocalista Alírio Netto (Age of Artemis e Khallice), o guitarrista Marcelo Barbosa (Almah e Khallice), além do baixista Felipe Andreoli e o baterista Bruno Valverde, ambos integrantes do consagrado Angra. O show será realizado no Bolshoi Pub e começa a partir das 23 horas.    
          Último a integrar o grupo, Marcelo Barbosa contou um pouco sobre a experiência de dividir o palco novamente com seu amigo de longa data Alírio Netto - eles tocaram juntos durante anos na banda brasiliense de Prog Metal Khallice - e também seu ex-companheiro de Almah, Felipe Andreoli. Marcelo falou da sensação de entrar no mais novo projeto musical que promove a união com seus parceiros, a HeavyPop. 

Quando e como surgiu a ideia de fazer o projeto da HeavyPop?   


Na verdade sou muito próximo aos outros integrantes. O Netto é praticamente de minha família, padrinho do meu filho e tal. Como ele mudou pra São Paulo, há tempos comentávamos que precisávamos arrumar uma desculpa pra tocar juntos vez ou outra.  A mesma conversa rolava com o Felipe, com quem gosto bastante de tocar e desde que ele deixou o Almah não tivemos muitas oportunidades de fazer um som juntos. O Netto, juntamente com o Felipe formataram esse trabalho e me fizeram o convite. Aceitei na hora, pois além de grandes músicas, trata-se de amigos queridos com quem tenho muito prazer em trabalhar.
 




Vocês fazem releituras de músicas pop dos anos 80 e 90. Como fazem para transpor os arranjos e particularidades dessas músicas para o rock pesado?

 Como eu moro em Brasília e os outros três em São Paulo, não temos muitos oportunidades de ensaio. O que acontece é que já temos em mente que as músicas devem ser tocadas com uma pegada mais rock/metal, e como temos intimidade com esse estilo, tanto em matéria de timbres quanto interpretação, isso já meio que acontece naturalmente. 

Como é a experiência de dividir o palco novamente com seu grande amigo de muitos anos Alírio Netto, o ex-companheiro de Almah Felipe Andreoli e o mais novo baterista do Angra, Bruno Valverde? 

É sempre um prazer. Já havia tocado com todos eles em situações distintas, cada um à parte, mas não com todos na mesma banda. Como eu disse, me sinto muito confortável. Em casa mesmo. Tô mal acostumado quanto a isso, toco com muitos músicos excepcionais. Quando os mesmos ainda são grandes amigos com quem você tem empatia, a mágica acontece. Estou convicto de que ainda faremos muitas coisas juntos, tanto do HeavyPop, quanto em outros projetos.  

Pra fechar, como deve ser composto o repertório desse show no Bolshoi Pub na próxima segunda? 

Tocaremos uma parte do show de Guns n' Roses e Bon Jovi, que é um trabalho que o Netto comumente apresenta no Bolshoi periodicamente e, outra de clássicos do Pop dos anos 80 e 90. Tem muita coisa boa, de Toto a The Police, passando por Michael Jackson e Seal. Com certeza a galera vai curtir muito!  


 Veja vídeo da HeavyPop tocando uma de suas releituras ao vivo: 



 Serviço: 
Show HeavyPop em Goiânia (GO) 
Data: 20 de abril (segunda-feira)
Local: Bolshoi Pub
Horário: Abertura da casa as 21h / Show a partir das 23h
Endereço: Rua T-53/T-2, n 1140, Setor Bueno
Telefone: (062) 3241-0731 (Horário comercial)

domingo, 5 de abril de 2015


Crítica:

O Ano Mais Violento (A Most Violent Year / 2015 / EUA) dir. J.C. Chandor

por Lucas Wagner

É curioso que, mesmo divergindo em praticamente todos os aspectos, este O Ano Mais Violento possua uma essência similar àquela do filme anterior de J.C. Chandor, Até o Fim: ambos tratam de homens lutando por sua integridade (física e/ou psicológica) enquanto sofrem constantes ataques de seus ambientes. Mas, enquanto no longa anterior víamos Robert Redford batalhando por sua vida enquanto à deriva no mar, aqui o protagonista interpretado por Oscar Isaac é levado aos seus limites psicológicos para conseguir manter sua integridade moral em um meio corrupto e corruptor. Uma prova de habilidade de Chandor de trabalhar um centro temático dentro de enredos absolutamente distintos.

Se passando em Nova York no ano de 1981, considerado o mais violento da História da cidade, o roteiro de Chandor acompanha o dono de uma companhia de distribuição de combustível, Abel Morales (Isaac), que, às vésperas de fechar uma promissora compra de uma propriedade, começa a enfrentar diversos eventos estressores que ameaçam colapsar tanto o seu negócio quanto a transparência ética e moral que busca manter em sua profissão. Assim, Morales é obrigado a lidar com uma investigação de seus negócios, um processo legal, caminhões de combustíveis sendo roubados, competidores gananciosos, discordâncias da esposa quanto ao modo como lida com a empresa, e ainda um empregado que reagiu a um roubo de caminhão e escapou, inadivertidamente sujando o nome da companhia.

Demonstrando esmero na reconstrução do período histórico, O Ano Mais Violento aposta numa montagem com planos longos e movimentos de câmera lentos, angustiando o espectador, além de utilizar aspectos do ambiente para fins de construção de atmosfera, algo que o diretor de fotografia, Bradford Young, entende muito bem ao usar predominantemente tons sépia e sombras na composição dos planos, emulando tensão e diversos aspectos obscuros dos personagens e situações, ao passo em que as cenas externas cobertas pela neve e lama contribuem para uma sensação de melancolia que coaduna com a trilha sonora de Alexander Ebert ao buscar ressaltar um sentimento de solidão (como fez em Até o Fim) que isola ainda mais Abel em suas lutas, um isolamento que ecoa nos planos abertos que Chandor utiliza em momentos específicos para filmá-lo. E se esse isolamento é foco, a sensação de estar encurralado é alcançada pelo diretor quando filma diversos personagens em planos onde esses aparecem nos cantos extremos dos quadros, numa composição desequilibrada por demais incômoda.

Tais sensações desconfortáveis, até angustiantes, buscadas pelos realizadores não são menos do que adequadas ao projeto, que se trata de um homem “íntegro” sendo testado até os limites de suas posições ideológicas. Afinal, Abel se orgulha de (como acredita) ter crescido profissionalmente com seu próprio esforço, sem recorrer à ajuda criminosa ou atalhos nas leis para tal, galgando degraus de ser um “mero” motorista de caminhão para se tornar uma figura tão forte e admirada. E, de todas as maneiras possíveis, Abel parece buscar manter essa persona de sucesso, desde o uso de uma indumentária elegante e por vezes imponente, até ao evitar usar sua língua original (o espanhol) durante a maior parte do tempo, como se desfazer-se de sua identidade como imigrante fosse parte essencial de uma imagem bem sucedida. Mesmo sob essa perspectiva, é bacana observar como o homem se mantém gentil com seus funcionários e colegas, buscando encorajá-los ao mesmo tempo em que não raro faz uso de afirmações verbais sobre enfrentamento de dificuldades e ser capaz de crescer por si mesmo sem perder a integridade moral.

Assim, vê-lo sofrendo baques cada vez mais fortes que parecem querer forçá-lo a atitudes que condena (ao mesmo tempo em que assumir uma postura criminosa enquanto sofre uma investigação não seria sábio), e ainda sofrer conseqüências de atitudes impensadas por parte de terceiros (como o empregado que reage ao assalto), parece fazer com que cada plano de ação pareça fútil, e que circunstâncias agressivas e incontroláveis aparecerão de qualquer maneira. Ainda, seu comportamento moral parece ser constantemente repreendido, mesmo por sua mulher, Anna, como sendo algo um tanto quanto pueril, ao mesmo tempo em que talvez seja justamente essa postura de integridade moral que faz com que Abel receba apoio e admiração mesmo por parte daqueles que querem derrubá-lo.

E se citei Anna, vale dizer que o seu relacionamento com o marido é um dos aspectos mais curiosos do projeto. Interpretada pela linda Jessica Chastain com uma postura sempre altiva, reforçada pela indumentária colada que ressalta sua imponência ao desenhar sua volumosa figura corporal (sem falar nos generosos decotes estrategicamente usados), Anna parece ao mesmo tempo olhar o marido como um filhote de cachorro que não sabe bem como sobreviver a um mundo selvagem e com um carinho e amor talvez atribuídos justamente a essa “inocência” de Abel. Aliás, vindo de uma família de criminosos, não surpreende que essas características de Abel possam vir como um respiro, apesar de Anna constantemente apresentar a possibilidade de recorrer a seus familiares para ajudá-los. Mais importante é como Anna compreende a postura do marido e, se muitas vezes bate de frente com suas visões, outras apenas o consola com afeto, mas nunca demonstrando o menor sinal de fraqueza (atentem para o momento em que limpa os olhos molhados depois de segurar as lágrimas em uma intensa briga com o marido). Interessante, aliás, que a residência do casal traga um equilíbrio entre suas personalidades: a ostensividade do imóvel e a porta de cor azul (atribuída aos figurinos de Anna) dividem lugar com as vidraças constantes que representam a transparência de Abel.

É fascinante, aliás, o cuidado com que Chandor filma o casal. Estabelecendo bem sua dinâmica na cena em que atropelam um animal e tomam atitudes dissimilares em relação a isso, Chandor apresenta o mesmo minimalismo que tanto enriqueceu seu projeto anterior ao demonstrar precisão em planos atentos a detalhes em suas reações. Quando Abel demonstra, simultaneamente, imponência e gentileza em sua fala dirigida a executivos de bancos, Anna dá um sorriso de orgulho, enquanto um sorriso parecido aparece logo após demonstrar um pragmatismo muito diferente do marido em um momento específico, quando parece sentir ter mostrado “quem tem razão”. Além disso, a mise en scène desenvolvida pelo diretor e o elenco é certeira em gestos discretos mas reveladores, como os olhares de canto de olho divididos entre Anna e Abel, demonstrando uma parceria tácita e uma “leitura de pensamentos” digna de um casal íntimo, intimidade essa ressaltada pelo conforto físico que parecem sentir um com o outro, em brincadeiras descontraídas ou gestos de carinho isolados. Essa inteligência da mise em scène pode ter ênfase no tratamento ao casal, mas se expande para demonstrar aspectos sutis de muitas relações, com destaque para o momento em que o advogado Andrew Walsh (Albert Brooks) coloca a mão no ombro de Abel quando se dirigem a uma reunião possivelmente estressante, como se demonstrando companheirismo mas também uma tentativa de acalmar Abel, que poderia agir explosivamente nessa situação.

Mas, de tudo, talvez o mais surpreendente quanto a O Ano Mais Violento diga respeito à maturidade do roteiro de Chandor no tratamento daquele universo e seus personagens. Sim, Abel pode ser moralmente admirável, mas muitas vezes seus atos denotam certa inocência, e uma descoberta específica no fim do terceiro ato (que não revelarei aqui, é claro) representa um golpe certeiro quanto ao modo como via seus negócios e seu sucesso (aliás, será o nome do personagem mera coincidência com o irmão de Caim?). E, se Anna já aparece como uma figura ambígua, todos os outros personagens adquirem personalidades multifacetadas que fogem de estereótipos facilmente atribuíveis. O procurador local, por exemplo, poderia ser um perfeito exemplo de vilão, mas aparece como uma figura gentil que está apenas fazendo seu trabalho, ao passo que ladrões demonstram receio em travar um tiroteio pelo perigo de ferir civis, e os concorrentes de Abel nunca são abertamente hostis (e às vezes nem encobertamente), e mesmo executivos de banco podem demonstrar uma assertividade e bondade raras nesse ramo. Se esses personagens agem de forma “repreensível”, não é por serem maus, mas por estarem fazendo o “necessário” para sobreviver em um meio tão aversivo como aquele.

Não é a toa que um dos melhores planos do filme traga sangue e combustível em um mesmo enquadramento, com Abel adotando uma postura fria e cuidando do vazamento do segundo líquido, como se refletindo a lição que aprendeu durante a projeção. Por mais que não se deseje isso, quando se está no mundo de negócios, seja de combustível ou qualquer outro, a violência sempre é um efeito colateral.

- Outros textos meus sobre filmes dirigidos por J.C. Chandor:

ATÉ O FIM



sábado, 28 de março de 2015


Crítica:

Vício Inerente (Inherent Vice / 2015 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson

por Lucas Wagner

Quem lê ou assiste Vício Inerente procurando algo meramente parecido com “coerência” pode se sentir irritado, já que esse provavelmente é o critério errado para apreciar tanto o romance de Thomas Pynchon quanto esta adaptação roteirizada e dirigida por Paul Thomas Anderson. Se, no entanto, o espectador se deixar levar pela vibe do projeto, pode acabar se divertindo, pois, mais do que funcionar como narrativa de mistério ou estudo de personagens, a obra busca captar a atmosfera cultural dos EUA nas décadas de 60/70, o que, inevitavelmente, o leva a se transformar num exercício de aleatoriedade.

A trama tem início quando o detetive particular Doc Sportello (Joaquin Phoenix) recebe a visita de sua ex-namorada Shasta Fay Hepworth (Katherine Waterstone), com um pedido de ajuda quanto a um esquema de conspiração e crime que ela se viu envolvida com o novo namorado e a esposa deste. A investigação, no entanto, leva Doc a encontros com figuras bizarras e redes de crimes mais profundas do que esperava.

Vício Inerente tem uma estrutura típica de um noir, além de elementos característicos do gênero. Se a investigação de Doc começa como algo relativamente simples, aos poucos se descortina conexões bizarras e complexas contingências que revelam uma conspiração muito mais profunda do que inicialmente se acreditava, com policiais corruptos e grandes figuras milionárias envolvidas, os diferentes casos mostrando uma ligação essencial, e todas as pessoas parecendo ter duas caras. A figura da femme fatale, essencial em qualquer noir, a propósito, funciona como grande motor para o protagonista, e Shasta é um exemplo impecável, com Katherine Waterstone emprestando à personagem um caráter sedutor e sombrio, mas com camadas de melancolia e fragilidade que podem ser sinceras ou apenas meios de manipulação psicológica.

No entanto, no fim das contas, a intrincada trama simplesmente não faz sentido, e cabe na metáfora da sopa, onde o enredo engrossa mas em nada acrescenta ao projeto como um todo. As coincidências entre os casos soam rasas e até mesmo forçadas, as justificativas por trás dos objetivos e das ações pouco convencem, personagens desaparecem rapidamente sem dizer a que vieram enquanto outros aparecem demais sem ter uma ligação explícita com o fio principal da história, assim como diversas pontas ficam soltas no final, sem falar em elementos que são jogados na narrativa como aparentemente importantes e depois são deixados de lado. Pode parecer uma crítica negativa, mas passa longe disso. É esse nonsense o ingrediente secreto de Vício Inerente. É como se realmente acompanhássemos uma história difícil através dos olhos e ouvidos de um cara que, sempre que possível, está fumando um baseado, inalando gases anestésicos ou usando algum outro tipo de entorpecente. Todas as ligações, contingências e coincidências da obra parecem fruto de pura paranóia, e o fato de que não só Doc mas todos os personagens se comportam do mesmo jeito, alicerçam o longa numa atmosfera geral de fritação.

Paul Thomas Anderson reconhece isso e estrutura sua direção nesse sentido. A montagem com fusões lentas, as cenas em slow-motion com a narração “astrológica” (sério) ao fundo, os longos planos abertos com lentos closes e os igualmente arrastados travellings traduzem a sensação de letargia típica da maconha, que corrobora com diálogos literais do romance que hora parecem simplesmente desorientados e outras vezes trazem insights poéticos que ocasionalmente revelam perspicazes digressões filosóficas. Ainda, é curioso como alguns personagens (mais especificamente Coy Harlingen e Shasta Fay) ganham um aspecto alucinatório em suas aparições e desaparições inesperadas, sem que sua veracidade seja questionada por Doc, já que é um sujeito por demais acostumado com delírios e alucinações (genial o momento em que escreve um alerta de “Paranóia” em seu bloco de anotações quando conversa com um cliente). E por mais que Anderson se entregue à diversão de sequências desvairadas e hilárias como aquela envolvendo Doc, o dentista e Japonica Fenway, ele ainda mostra-se sensível o suficiente para conferir o ar de devaneio tristonho aos episódios de recordações de Doc sobre Shesta, em especial aqueles em que o diretor usa ao fundo Harvest e Journey Through The Past, duas das mais melancólicas canções de Neil Young, sendo belo como essa última perdura durante um bom tempo quando pára de tocar no flashback como trilha sonora e continua como som diegético (origem no ambiente) na linha narrativa principal através de rádios, como se fossem fantasmas da memória de Doc influenciando o presente.

Traduzindo bem a desorientação filosófica e cultural desse período histórico, Vício Inerente explicita inarticulações ideológicas de forma sempre dinâmica e descontraída, e aqui, negros e arianos são capazes de deixar aspectos basais de sua rixa histórica para se juntarem ao encontrar “algumas visões em comum sobre o governo do país”, e o hater de hippies “Big Foot” Bjorsen (Josh Brolin) tem sua primeira aparição em cena como um hippie num comercial de imóveis. Falando nesse personagem, um brutamontes que age como manda-chuva, é sintomático como em certo momento fica explícita sua submissão à esposa, que aparenta ser a verdadeira “chefe da casa” num momento histórico onde as definições de papéis de gênero vinham mudando. O filme respira contracultura de uma forma descontraída, cool, e o próprio ambiente dos personagens parece derretido em suas bases, incoerente, e basta observar como Doc usa um consultório médico alugado para atender seus casos, num uso unicamente funcional do estabelecimento sem considerar as consequências imagéticas que isso pode ter. O tema do filme é o seu momento histórico, um momento de transições ideológicas onde nada ainda parece concretizado o suficiente para fazer o mínimo de sentido. É como se a própria época parecesse uma lombra, indefinida e ondulada em suas percepções incoerentes e impalpáveis. Daí a essencial falta de coerência do projeto. Esse é o seu núcleo.

Numa das melhores sequências do filme, com o caráter de devaneio que percorre diversos momentos da projeção, vemos uma replicação da Santa Ceia com Coy Harlingen (Owen Wilson) no centro e hippies ao redor, enquanto comem pizza. É uma representação que resume o filme: com descontração, explora a atmosfera daquela cultura permeada por drogas, trocando o sagrado clássico pelo hedonismo do nonsense.

sexta-feira, 27 de março de 2015



Análise:

Clown (Clown / 2014/ EUA, Canadá) dir. Jon Watts

por Lucas Wagner

Clown consegue a façanha de ser profundamente perturbador ao mobilizar o espectador de formas divergentes enquanto lentamente o arrasta para uma história que, mais do que apenas geradora de sustos, apavora até a espinha. Além de, é claro, servir de mais argumentos para que eu possa afirmar que palhaços não são nada legais...

Baseado em um trailer falso feito apenas de “brincadeira” em 2010, o roteiro de Christopher D. Ford e do, também diretor do longa, Jon Watts, Clown conta a história de um pai, Kent McCoy (Andy Powers), que, no desespero para arrancar sorrisos do filho em seu aniversário, se veste com uma antiga fantasia de palhaço encontrada em um baú no porão de uma antiga casa. O problema é que a fantasia é amaldiçoada, possuindo seu usuário com um espírito de um antigo demônio...

Interessante que o filme consiga um equilíbrio entre um tom farsesco e outro mais denso, sério. Os temas cartunescos trazidos pela trilha instrumental de Matthew Veligdan ratificam essa dubiedade, e o retrato de “família excessivamente feliz” que os realizadores pintam dos McCoy no início consegue o duplo efeito de soar falso e explicitar um carinho intra-familiar que será importante para que os eventos posteriores na narrativas alcancem relevância dramática. E, mesmo com esse retrato, que pode parecer afastar aqueles personagens do “mundo real”, é notável que estes se comportem como figuras racionais, com dificuldades naturais na aceitação de uma situação tão absurda como a que acabam envolvidos, o que corrobora para um clima de tensão advindo de própria agonia de ver pessoas comuns “dando murro em ponta de faca” em um contexto onde a lógica não se aplica.

Logo, percebe-se que uma das coisas mais perturbadoras em Clown diz respeito à própria dificuldade que o espectador pode encontrar para se mobilizar quanto ao que está assistindo: o filme se trata de uma bobagem que finge se levar a sério ou de uma história de horror que flerta com o drama familiar e brinca de ser besta? Tal indefinição só pode resultar em um efeito incômodo eficaz para uma obra desse tipo. As duas abordagens são usadas pelos realizadores, que inclusive sabem utilizar-se de meios visuais para validar ainda mais essa dificuldade. O diretor de fotografia, Matthew Santo, faz um bom uso das locações afetadas pelo inverno para aproveitar para adotar uma paleta de cores baseada no cinza que atribui um tom melancólico que não corresponde com eventos tão bobos do início da trama e nem com os citados tons farsescos que esta inicialmente assume. Ainda, os ligeiros créditos iniciais reforçam a ambiguidade ao mostrar imagens rápidas de crianças sorrindo e brincando, além do título em fontes coloridas, que pulam entre si em cortes bruscos/secos que incomodam. Ainda tecnicamente, Clown possui um primoroso trabalho de maquiagem na transformação do amoroso e feliz Kent no aterrorizante palhaço demoníaco, enquanto o figurino merece aplausos nos estágios da degradante fantasia, que aos poucos começa a parecer uma verdadeira pele, com detalhe para os abdominais que ganham contornos nítidos com a progressão da possessão.

Porém, o mais interessante é que o filme consiga aos poucos puxar o espectador para uma mobilização séria, esvanecendo o incômodo advindo da indefinição do “estilo” do longa para uma angústia que tem como causa a própria narrativa, a começar pela aterrorizante transformação a lá A Mosca que Kent vai sofrendo. E, ao se preocupar em validar o drama humano vivido mesmo em meio àquela bizarrice toda, os realizadores permitem que o projeto ganhe relevância emocional, sendo consequentemente mais assustador, e assim, ver um cara amoroso como Kent ir gradualmente se transformando em uma criatura “instintual” assassina, consciente do processo e sem poder evitá-lo, é doloroso, ainda mais pela doce performance de Andy Powers (e vale ressaltar que Eli Roth, que assume o papel do palhaço nos estágios mais avançados da possessão, aterroriza com seu tom de voz calmo, lento, grave e frio). Mas é Laura Allen que galga degraus para se tornar a verdadeira protagonista do filme, conseguindo evidenciar sentimentos profundos de culpa, amor, proteção e confusão na sua composição de Meg McCoy, que se vê posta a provas ainda mais angustiantes do que o próprio Kent, já que ela ainda mantém o controle de si e, mais do que isso, se vê responsável pela proteção da família por um ser que é e não é de sua família.

Usando a violência gráfica não exagerada o suficiente para servir apenas como gore, mas equilibrada em sua expressividade para funcionar como demonstração da seriedade da situação, além de gradual em suas exposições (algo coerente com a estratégia narrativa comentada no parágrafo anterior), Clown ainda aposta na afronta a elementos culturais para se tornar mais aterrorizante. Quando demoniza de uma maneira intensa e fisicamente grotesca a figura “divertida” do palhaço, os realizadores encontram uma forma (clássica, é verdade) de incomodar no nível básico do inocente sendo corroído pela maldade, uma situação já extensivamente explorada pelo Horror (vide o romance It, de Stephen King, ou o filme The Babadook) mas aqui exacerbada pela comentada progressão de seriedade da obra, que promove a sensação de um mergulho gradual nas trevas, e também porque Kent é uma pessoa muito “legal” para ser acometido por tamanha desgraça, sendo que o mesmo pode ser dito pela agonia de ver uma família tão harmoniosa sendo despedaçada daquela forma. Além disso (ah, sim, quem não viu o filme, pule pro próximo parágrafo), ao lidar ostensivamente (inclusive por meio visual) com assassinatos de crianças, o filme atinge até mesmo o mais insensível dos espectadores.

Funcionando como um curioso exercício narrativo nessa empreitada de jogar com a mobilização racional e emocional do espectador, Clown acaba derrapando um pouco ao apostar em alguns desgastados clichês no terceiro ato, mas possui atrativos o suficiente, além de ser genuinamente assustador, para merecer créditos.


domingo, 8 de março de 2015


Crítica:

Kingsman: Serviço Secreto (Kingman: The Secret Service / 2015 / Reino Unido) dir: Matthew Vaughn

por Lucas Wagner

Stardust, Nem Tudo é o Que Parece, Kick Ass, X-Men Primeira Classe... desnescessário dizer como a própria existência de um Matthew Vaughn já me faz feliz. Seus filmes conseguem a proeza de soarem descomprometidos ao ponto do farsesco e ainda assim serem levados a sério, seja por seus ricos personagens ou por uma trama que se torna mais densa sem, no entanto, perder a leveza característica. É um Cinema que se adequa a normas ao mesmo tempo que possui consistência própria. E Kingsman, seu novo trabalho, apesar de levemente inferior aos títulos anteriores, ainda é um empreendimento típico de Vaughn, e conta com um caráter deliciosamente subversivo que confere um sabor a mais ao projeto.

Baseado nos quadrinhos de Mark Millar e do próprio diretor, o longa conta a história de uma curiosa agência de serviço secreto (Kingsman) composta por perfeitos cavalheiros que, ao mesmo tempo em que promovem um ferrenho processo seletivo para novos membros (entre os quais está o protagonista, Egsy) tem que lidar com megalomaníacos planos do bilionário Valentine (Samuel L. Jackson).

Jamais escondendo o fato de servir como homenagem aos clássicos filmes de espionagem, especialmente aqueles protagonizados por James Bond, o roteiro de Vaugnh e Jane Goldman (parceira habitual do cineasta) investe em diálogos ou situações com contornos metalingüísticos, como quando Hart afirma gostar mais dos antigos filmes de espionagem, pois os novos são sérios demais, algo que, saído da boca de Colin Firth, ganha dimensão extra, dado o fato de o ator estar em O Espião Que Sabia Demais. A trama ainda ganha em criatividade ao burlar, mesmo que para fins cômicos, o caráter inacreditável das agências de espionagem comumente vistas nesse tipo de filme, que não parecem sofrer com cortes de verbas ou a burocracia de outros orgãos governamentais, e faz dos Kingsman uma agência independente formada por homens que tentam manter a tradição de um antiquado cavalheirismo britânico num mundo que vem perdendo as boas maneiras.

O mais curioso, porém, é o fato de o roteiro constantemente subverter suas tendências e criar uma estrutura incongruente em si mesma, algo como Vaughn havia feito referente aos filmes de super-heróis em Kick Ass. Aqui, temos cavalheiros que não hesitam em falar palavrões mesmo em contextos “inapropriados” ou ainda a presença do vilão interpretado com talento por Samuel L. Jackson, que contrapôe uma postura megalomaníaca típica dos clássicos de Bond com um estilo swag e uma língua presa que fragilizam ainda mais uma figura que consegue ser ao mesmo tempo ameaçadora e inocente, algo que sua repulsão à violência ou o design de produção de sua mansão (que comentarei mais adiante) reforçam muito eficientemente. Além disso, as mulheres no longa conseguem espaço sem servirem como meros símbolos sexuais ou interesses românticos dos homens, e apesar de Roxy (Sophie Cookson) infelizmente ser progressivamente apagada, a antagonista Gazelle (Sofia Boutella) demonstra muitas vezes mais determinação e pulso firme que o vilão Valentine, inclusive dominando-o em diversos momentos, numa postura diametralmente oposta das personagens femininas dos clássicos que o longa homenageia.

Mas, se já é esperada que certa adaptação gradual seja feita para se adequar à estranheza típica dos filmes do diretor, Kingsman parece exigir ainda mais força de vontade por parte do espectador, que é obrigado a aturar um primeiro ato em grande parte vergonhoso, onde mesmo o descarado descomprometimento do projeto não consegue salvar. Assim, além das (inicialmente) forçadas sequências de ação onde seus personagens, mesmo os “comuns”, parecem se comportar como se tivessem anos de treinamento em artes marciais, o longa desperdiça a oportunidade de explorar o processo seletivo dos espiões, algo que começa bem quando, no primeiro teste, já tem um participante aparentemente morto, estabelecendo um sentido de perigo que não sobrevive durante o processo como um todo, que vai se tornando um tanto aborrecido. Felizmente, a narrativa ganha com o passar do tempo, em especial devido à excelente montagem e à direção firme de Vaughn, mais uma vez bem sucedido em atingir um gradual senso de urgência na trama e no arco dramático dos personagens.

Kingsman ainda se revela um trabalho visualmente cuidadoso. O design de produção dos diferentes ambientes ganha tanto em eficiência como em contribuição ao desenvolvimento dos personagens. A citada mansão de Valentine, por exemplo, possui ameaçadores corredores de pedra, coloridos muitas vezes pelo vermelho típico desse vilão, ressaltando um caráter infernal ao mesmo tempo em que o detalhe das várias obras de arte envolvendo pandas é genial ao sugerir uma natureza mais gentil ao personagem enquanto ainda reforça seus discursos envolvendo o planeta em decadência (sendo o panda um animal em extinção). E se o aconchegante lar de Egsy do início se torna um verdadeiro entulho com o passar dos anos, o escritório de Hart fascina com as reportagens de celebridades coladas na parede, que acaba contribuindo para a faceta de perfeita discrição e eficiência desse tão interessante personagem, orgulhoso pela invisibilidade aparente de seus trabalhos. Ainda, o longa conta com dois planos pensados com precisão quando, em frente a um espelho, Egsy observa o fracasso circular de sua vida, seja com o elemento de uma foto sua na Marinha, a princípio, e depois um terno jogado no chão.

O visual do longa se mostra mais ambicioso na medida em que tece um triângulo entre Egsy, Valentine e Hart. O estilo swag que o protagonista tem no início dá lugar às vestimentas sóbrias e elegantes à lá Hart que completam seu arco dramático (pontos para o figuro), ao mesmo tempo em que é difícil evitar a comparação entre o exterior do complexo habitacional onde Egsy mora no início com as estruturas fisicamente semelhantes espalhadas pela praia onde se encontra a mansão de Valentine. É como se, visualmente, os realizadores abrissem margem a uma reflexão acerca de seu herói, que no início é comparável não apenas ao estilo de Valentine, mas também com seus princípios (que no fundo, no fundo mesmo, não são tão malignos assim) e sua inocência infantil, enquanto aos poucos vai assumindo a confiança e a polidez típica do personagem de Firth.

Recheado com as habitualmente intensas sequências de ação de um filme de Matthew Vaughn, Kingsman se permite um mergulho ao cartunesco ainda mais evidente do que nos trabalhos anteriores do diretor, a violência se tornando tão exagerada que possibilita que encaremos o pesado humor negro do longa com descompromisso, o que permite que este seja extremamente eficiente ao levar a risadas mesmo em piadas excessivamente gráficas e/ou ultrajantes, causando, inclusive, certo sentimento de culpada catarse em sequências como aquela em que a cabeça de numerosos milionários explodem como fogos de artifício, ou (a minha favorita) quando um grupo de fanáticos religiosos conhecem seu “criador” antes do esperado, sob o delicioso solo de Free Bird.

Com um elenco rico ao trabalhar o melhor possível seus personagens (sendo Colin Firth e Samuel L. Jackson os que mais se destacam), Kingsman é mais um ponto alto na carreira de seu diretor, e confesso mal poder esperar por uma possível continuação.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015


Crítica:

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (Birdman / 2014 / EUA) dir. Alejandro Gonzáles Iñarritu

por Lucas Wagner

Birdman é a imagem de um artista procurando escapar de sua zona de conforto. Essa afirmação cabe ao protagonista Thompson (Michael Keaton), que depois de uma imagem de decadente celebridade consagrada pelo super-herói do título que interpretou em uma franquia há uns 20 anos, busca afirmar-se enquanto artista “sério” através da adaptação teatral de uma obra de Raymond Carver, a qual, ambiciosamente, escreve, dirige e protagoniza.

Mas essa afirmação cabe também ao cineasta Alejandro Gonzáles Iñarritu que, depois de construir uma imagem ligada a obras mórbidas e desesperançadas como 21 Gramas e Amores Brutos, aqui se desafia criando um longa não apenas rebuscado nos quesitos técnicos (que rivaliza com a crueza de seus trabalhos anteriores) mas também quando se propõe a equilibrar entre o drama e a nunca antes explorada comédia, usando ambos os gêneros para conseguir alcançar eficientemente as ambições narrativas. 

Rodado de forma a parecer um imenso plano-sequência, Birdman tem nesse recurso um grande chamariz que, a priori, parece exibicionismo gratuito. No entanto, nas mãos do diretor de fotografia Emmanuel Lubenzki (cujo currículo que inclui A Árvore da Vida e Gravidade dispensa apresentações) e com um planejamento meticuloso por parte dele e Iñarritu, o resultado é de uma fluidez admirável que capta a atenção do espectador, além de sugerir percursos constantes entre o teatro e a realidade, construindo um clima de tensão que se torna mais agudo justamente pela ausência de cortes (assim como pela trilha de percussão) e também para implantar a realidade caótica por trás dos bastidores da peça.

Mais impressionante é a criatividade de Iñarritu e Lubenzki ao brincarem com a técnica, conseguindo que a narrativa se torne quase que um fluxo de consciência quando viaja através do tempo, em elipses elegantemente realizadas (particularmente sou fã daquela em que uma proposta de sexo logo dá lugar à preview da peça), onde a iluminação e design de som trabalham juntos para nos guiar para períodos psicológicos e cronológicos distintos, assim como acontece com o uso do espaço, aqui tornado dinâmico a partir da constante “quebra” dos ambientes físicos para se transportar a outros, tudo isso conseguindo simular o processo de pensamento dos personagens, particularmente Thompson, quando os realizadores percorrem seus embates com a realidade assim como consigo mesmo, com delírios e devaneios que muitos refletem sobre como ele enxerga a si mesmo, como quando parece mover objetos com a “mente” (sugerindo um poder sobrenatural que desaparece na presença de terceiros) ou quando voa, e mesmo com a voz do Birdman – sua própria voz, obviamente - que insiste em colocá-lo contra a parede em impiedosas afirmações sobre ele mesmo.

Ao transformar o filme nessa dialética interconexão entre realidade “externa” e “psíquica”, Iñarritu e Lubenzki fazem de Birdman um ousado exemplo de estilo em prol do conteúdo, já que, em grande parte, o filme é um estudo sobre seu protagonista, um homem cujos maiores anseios existenciais se encontram não em profundas e inarticuláveis buscas do “ser”, mas em ser reconhecido e “amado”, uma palavra que constantemente confunde com “admirado”, como afirma sua ex-mulher. Pois o grande embate que Thompson enfrenta diz respeito àquele que ele acha que “deveria ser” em relação àquele que “é”, pois, considerado um artista “menor” por ter construído sua fama em torno de uma franquia de super-herói (o que representa um desagradável preconceito por parte dos realizadores do filme), acredita que só seria respeitado produzindo arte “séria”, uma que, em alguma medida, diga algo “profundo” sobre o ser humano.

O que, claro, está aparentemente fora de sua alçada, e por isso mesmo, o seu processo criativo se torna, como toda criação artística, uma tortuosa passagem pelo inferno refletido por si mesmo, o que o leva a alguma espécie de auto-descoberta, culminando, então, numa auto-destruição em prol da construção de uma imagem eterna, uma que, assim, eleve seu “espírito” frente aos meros mortais. No fundo, sua jornada possui um caráter intrinsecamente cômico, pois é ao aceitar sua “superficialidade” enquanto ser humano que consegue então produzir uma performance poderosa e repleta de sadismo. Tal superficialidade, ligada à imagem do Birdman da qual ele tanto corre, é revelada, para si e para o público, através de uma divertida sequência lúdica (digna de blockbuster) e também pelo simbolismo de seu nariz reconstruído, ao final do filme. O mais curioso é que esse clímax de sua busca enquanto artista transforma-o também enquanto humano, e essa aceitação de “superficialidade” acaba por fornecê-lo insights sinceros sobre a atitude que vem tomando em relação a si e ao mundo durante toda sua existência.

Diante disso, Birdman se torna uma obra que, em seu cerne, versa sobre aceitação de si mesmo versus a imagem que nos vemos obrigados a criar em um mundo que muito tem de fast-food imagético. Assim, seu elenco parece em grande parte composto de pessoas em confusão ontológica, que usam a Arte (no caso, a atuação) enquanto meio para alcançarem seus “verdadeiros selfs”, uma busca em grande parte frustrante que encontra no ator Mike Shiner (Edward Norton) uma figura intrigante justamente por parecer arrancar de si verdadeiras e dilacerantes expressões enquanto no palco, ao passo que em sua própria vida não se mostra capaz de uma interação completa com outro ser humano (nem no nível sexual) e nem consigo, não hesitando em se apropriar de mentiras para o engrandecer em entrevistas; o que não significa que a consciência de ser uma eterna máscara não o oprima. Já Lesley (Naomi Watts) é, apesar da imagem de mulher forte, dotada de dolorosa carência e necessidade de afirmação por terceiros, o que culmina numa cena onde tal inarticulação de si mesma acaba refletida em excitação sexual num encontro lésbico depois de aceitação e elogios pela igualmente confusa Laura (Andrea Riseborough). Nesse meio, Sam (Emma Stone), filha de Thompson, luta para desvincular de si a imagem de produto da falta de autoconhecimento de seu pai.

Coadunando com muita eficiência o humor esculachado que nunca deixa que a obra se torne demasiadamente densa enquanto drama (o que é uma surpresa por parte de Iñarritu), a obra ambiciona levar suas reflexões acerca de auto-imagens verdadeiras e falsas e da Arte como túnel entre elas a um nível ainda metalinguísitco, e assim esbarra (propositalmente?) com a realidade, sendo que Keaton há uns 20 anos, também ficou marcado pela imagem que criou do Batman, enquanto o ator Mike Shiner tem, como seu intérprete Edward Norton, uma personalidade complexa de um ator que, mesmo interessantíssimo, deixa que seu “ego” assuma proporções maiores do que deveria.


Concluindo: apesar de às vezes ameaçar sucumbir à pressão de suas ambições, Birdman revela-se maduro e conhecedor o suficiente de seu protagonista e suas propostas para criar um final ambíguo que lança o espectador de volta à sua realidade ainda ruminando sobre o que acabou de ver. E as propostas fantasiosas, reais ou metafóricas, são imensamente ricas.